Sandra Regina Costa Pereira
Mestre em Educação pela UFSM/RS
São Luís – MA
INTRODUÇÃO
Este artigo tem sua origem vinculada a constantes dúvidas, inquietações, debates e reflexões que foram ocorrendo ao longo da minha trajetória acadêmica que se intensificaram com as vivências profissionais construídas no cotidiano como transcritora Braille em uma universidade federal.
Partir do pressuposto de que todos nós possuímos liberdade à locomoção em um país como o Brasil é se apropriar de um discurso pronto e desconectado da realidade vivida pelas pessoas com deficiência, estas, embora exista texto constitucional e infraconstitucional que lhes ampara no plano ideológico, muitas vezes não possuem no plano fático a possibilidade de exercer o direito de ir e vir.
O direito à livre locomoção de pessoas cegas é muitas vezes cerceado por falta de ações complexas concernentes a acessibilidade que irão requerer um aparato técnico e financeiro para realizar mudanças estruturais e arquitetônicas dos espaços, mas também podem ser constituídas por razões de cunho assistencialista e incapacitante quando deixamos (sociedade, pais e educadores) de prover a devida orientação para que desde muito cedo a criança cega seja estimulada a controlar seus movimentos corporais nos mais variados espaços, com as adaptações que são possíveis lançar mão para compensação/substituição da visão.
É oportuno destacar que a visão oportuniza macro informações que não são possíveis obter de pronto quando são utilizados os sentidos remanescentes, no entanto, acredita-se que a experiência de uma pessoa cega com o meio que a cerca não pode ser restringida devido sua impossibilidade visual, ao contrário, a criança cega precisa ser estimulada e coordenada desde os primeiros dias de vida à utilização dos outros meios que estão aptos a lhes ofertar informações.
Mas como realizar o trabalho de estímulo à autonomia de pessoas cegas adultas que desde cedo foram habituadas a ‘usar o olho do colega’ ou simplesmente torná-lo uma ‘bengala humana’ mesmo quando sua bengala poderia ser um guia mais eficaz? Por que a Orientação e Mobilidade é tão importante para as pessoas cegas durante toda a vida, não apenas na infância ou fase adulta? Como prover orientações aos agentes envolvidos nesse processo nos variados espaços? Assim, o artigo tem por objetivo refletir sobre a necessidade de participação e compromisso de todos para a construção de crianças cegas independentes que resultarão em adultos cegos autônomos na academia e demais espaços sociais.
AÇÕES PRELIMINARES PARA A INDEPENDÊNCIA DA PESSOA CEGA
Iniciar a Orientação e Mobilidade desde tenra idade é o caminho mais acertado para tornar a criança cega um adulto que consiga se deslocar sem maiores receios, com objetividade e determinação, no entanto, esta tarefa precisa ser mediada por familiares e profissionais que compreendam a importância de um bom direcionamento desse momento de construção da autonomia, pois, a confiança e segurança que a criança cega deposita nesse adulto repercutem diretamente nos resultados que podem ser tanto positivos (que é de fato o que se espera) ou negativos (quando há uma quebra de confiança entre o mediador e a criança).
Orientação e Mobilidade é tomada aqui em sintonia ao conceito ofertado por COIN; ENRÍQUEZ (2003) que esclarecem o seguinte:
A orientação é definida como o processo cognitivo que permite estabelecer e atualizar a posição que se ocupa no espaço por meio da informação sensorial, enquanto a mobilidade, em senti¬do amplo, é a capacidade de deslocar-se de um lugar para outro ( p. 249).
Para tal, é imprescindível que a criança cega tenha a seu dispor uma gama de estímulos que a incentivem ao movimento, pois é em busca desses estímulos ofertados que a criança começa seu desenvolvimento de autonomia, cabe assim ao adulto pensar na criação de mecanismos de colaboração para que o espaço onde a criança se movimenta esteja repleto de pistas que auxiliem a sua localização e orientação espacial executando deslocamentos com mais segurança.
Muitos maneirismos e atrasos psicomotores em crianças e adultos cegos são reflexo de intervenções tardias, a atividade corporal iniciada desde cedo oferta contato com o entorno que a cerca de forma mais fluida e dinâmica e ainda reflete nas relações interpessoais formadas, pois a possibilidade de brincar, correr, pegar um ônibus, marcar para se encontrar em um shopping com um amigo, enfim, qualquer atividade e socialização envolve a Orientação e Mobilidade.
Nesse sentido, é necessário pensar em como colaborar para que a criança cega consiga realizar associações sinestésicas, adaptações auditivas, olfativas e táteis durante o processo de seu desenvolvimento, sendo o adulto/mediador peça fundamental fazendo uso da comunicação verbal e da mediação entre o objeto/espaço com mediações diretas com o objeto para evitar incompreensões e lacunas na aquisição do conhecimento,
UTILIZAÇÃO DE TÉCNICAS DE ORIENTAÇÃO E MOBILIDADE EM PROL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL
Para que a criança cega comece a dominar as diversas técnicas de Orientação e Mobilidade (OM) e consiga alcançar desenvoltura e segurança em seus movimentos precisa passar por diversos exercícios físicos e atividades motoras que busquem o equilíbrio (envolve o aparelho vestibular que está atrelado diretamente a visão), portanto é natural que crianças cegas tenham dificuldade maior do que uma criança vidente para o equilíbrio do corpo. Outro aspecto a ser destacado é o desenvolvimento motor que necessita estar integrado, as habilidades motoras (finas e grossas) que irão possibilitar os diversos movimentos (cortar, correr, pular, andar, segurar uma bengala, etc.) são fundamentais para a OM.
Além da importância ligada a OM o desenvolvimento motor é imprescindível para a aquisição da leitura e escrita Braille, portanto, o adulto precisa ofertar subsídios para que as crianças cegas compreendam e executem com êxito as atividades por meio de uma mediação detalhada, verbalizada e lúdica.
Tais fatores são ligados às técnicas de OM, pois prescindem etapas que adiante serão fundamentais para outras técnicas mais avançadas, dentre elas a pré-bengala que deve ser incentivada logo que a criança conseguir se apoiar sozinha, pois seu uso além de proteger de possíveis obstáculos serve como forma de anteceder a utilização da bengala longa.
Apesar de atualmente já existir no mercado grande variedade de recursos tecnológicos que auxiliam a pessoa cega em sua mobilidade, como por exemplo, a bengala com sensor de obstáculos, tais recursos ainda estão na maior parte das vezes longe do poder aquisitivo dessas pessoas, sendo mais utilizadas as tradicionais bengalas, com preços mais acessíveis.
O Guia vidente (pessoa que irá guiar o individuo cego) pode ser outro importante parceiro para a OM, mas precisa ser lembrado que este não deve constituir como substituto exclusivo para todas as outras técnicas, contudo o que fatalmente se percebe é o guia sendo utilizado para colaborar com a mobilidade da pessoa cega, mesmo que muitas vezes sua orientação nem mesmo exista até que se chegue ao destino.
Diante disso, a crítica lançada é no sentido de prestar mais esclarecimentos tanto ao cego como ao guia vidente sobre a necessidade de apropriação das técnicas de OM, e principalmente da responsabilidade imbuída a esta pessoa, uma vez que durante sua colaboração é a responsável por zelar pela segurança da pessoa cega.
Nas escolas e faculdades a colaboração deve ser estimulada e antes de tudo, orientada, pois mesmo com boas intenções podem surgir embaraços decorrentes da falta de conhecimento de como executar esta importante tarefa.
À proporção que a criança se desenvolve várias técnicas lhes são apresentadas gradualmente: auto-ajuda e auto-proteção onde a própria criança se cerca de cuidados para com sua segurança por meio de pontos de referencia e pistas táteis, com sua orientação espacial que envolve ainda a medição, orientação direcionada, autofamiliarização, consulta a mapas táteis a pessoa cega consegue maior segurança nos mais diversos espaços (BRASIL, 2003)
Um grande diferencial a ser lembrado durante o aprendizado das técnicas de OM é que uma vez que a criança não enxerga só terá a possibilidade de compreender por imitação, para isso precisa que seu mediador oriente e realize a ação no espaço (sala, banheiro, cozinha, escola) ou com determinado objeto (bengala, pré-bengala, de forma concreta e ativa (BRASIL, 2003).
Hoffmann (2017) sugere que a OM seja orientada pelo professor de Educação Física ou pelo Fisioterapeuta pela peculiaridade de suas profissões lhes permitir amplo conhecimento sobre o corpo e movimento humano, contudo acredito caber aqui uma ressalva, de que estes profissionais precisam efetivamente trabalhar com uma equipe interdisciplinar, tendo em vista que a falta de visão reflete em questões emocionais e adaptativas, além dos impedimentos de ordem restritiva da visão, e que mesmo conhecendo sobre o movimento humano estes profissionais muitas vezes carecem de melhor capacitação para compreender as necessidades da pessoa cega relacionadas a questões que extrapolam seus conhecimentos técnicos.
POSSÍVEIS ENTRAVES PARA UMA ORIENTAÇÃO E MOBILIDADE EFICAZ NA UNIVERSIDADE
O guia vidente muitas vezes é visto como alguém que encurta um trajeto, melhora a inclusão e OM de pessoas cegas nos vários espaços, pois diminui a dificuldade de acessibilidade imposta por fatores externos à pessoa cega. No entanto, não raro, é possível ouvir de estudantes cegos que não foram a determinado lugar porque o colega não pôde ir com ele, ou que não fizeram tal atividade porque o colega que sempre auxilia não esteve durante aquela semana na universidade.
Diante disso, acaba-se por terceirizar responsabilidades e eximir-se de suas próprias, além obviamente de sobrecarregar uma pessoa que sempre se dispõe a colaborar com a inclusão de um colega cego, mas que de fato, não tem nenhuma obrigação formal para com este.
Não raro, os próprios professores delegam responsabilidade ao guia vidente ‘oficial’ (mesmo que este nunca tenha se disponibilizado oficialmente a isto) para que este resolva questões acadêmica que o próprio professor ou mesmo seu aluno cego deveriam estar a frente da resolução. Atividades simples como retirar um texto na xerox, se dirigir ao auditório, ir à biblioteca e ao restaurante universitário ou frequentar outros tantos espaços dentro da universidade normalmente tem sido realizados com os colegas videntes, algumas vezes por pronta colaboração, outras por extrema necessidade visto a limitação de acesso a estes espaços.
O que se observa, reiteradas vezes é que a academia não tem estimulado a busca pela autonomia, e muitas vezes por sua complexidade estrutural e inúmeras informações arquitetônicas que mais dificultam do que ajudam na localização, orientação e mobilidade dos estudantes cegos estes acabam por se apoiar literalmente em um colega, este quase sempre vive a mercê da impossibilidade do não, se vê na dificuldade moral de abstenção de sua colaboração em determinados momentos.
Vê-se estes guias como de fato uma bengala humana, e por vezes devido inclusive ao desconhecimento de que seu colega cego pode e deve se mover no sentido de apoderar-se de seu espaço na academia e empoderar-se coloca-se na posição de assistencialismo nas atividades inerentes àquele estudante cego, assim, não busca formas de orientar e estimular uma maior mobilidade dentro da universidade.
Por outro lado, é evidente que muita coisa precisa ser ajustada em relação a infraestrutura de uma cidade universitária, vários são os obstáculos que podemos apontar apenas em um olhar superficial (buracos, falta de corrimão, escadas não sinalizadas, postes em locais indevidos, prédios com falta de pisos táteis, sem placas informativas em Braille, sem pessoas aptas a prestarem informações e auxílio aos estudantes cegos, entre outros), afinal, são anos de exclusão que se rompe e agora requer novos espaços, acessíveis, o que não autoriza-nos a inércia até que este dia ideal enfim floresça.
Nesse sentido, se mostra um antagonismo quando o espaço que fornece profissionais de diversas áreas ao mercado de trabalho, entre eles pedagogos, professores de diversas áreas, inclusive educadores físicos, não tenha observado a necessidade de construir projetos de intervenção junto a esses novos alunos para que a academia seja descoberta por ele por meio da mediação de profissional habilitado para tal tarefa.
Importa esclarecer que a construção desta inclusão é dever de todos e torná-la possível não é só dever do poder público, mas de pais, colegas, professores, técnicos, equipe de serviços gerais, qualquer um pode colaborar com esse novo modelo inclusivo que se impõe no plano legal e muita vez demora a se efetivar no plano fático.
CONCLUSÃO
As observações lançadas ao longo do trabalho, são feitas no sentido de alertar e estimular pais, professores, demais profissionais e principalmente pessoas cegas a desacomodar-se desde cedo, e mesmo diante da inegável dificuldade de realização eficaz de uma orientação e mobilidade independente no primeiro momento, esta deve ser perseguida, sempre.
Alerta-se no entanto, que não se trata de exigir o impossível de uma pessoa cega em relação a sua independência, mas mesmo sendo empático à sua situação real de dificuldade de mobilidade em diversos ambientes por questões externas (falta de adaptações táteis, buracos, obstáculos, entre outros) acredita-se que além de continuar lutando para que o Estado invista em políticas públicas de adequação dos espaços públicos às condições de acessibilidade é necessário que o cego não paralise, não se abata frente à realidade atual.
É necessário que a Administração superior esteja atenta a estimular a oferta de serviços de apoio e intervenção para garantir o atendimento de OM nos espaços internos da universidade e fazer essa prática uma constante, principalmente nos primeiros semestres, logo após o acesso, visto ser decisivo este atendimento para garantia da permanência.
Isto só será possível se ele tiver recebido vários estímulos durante toda sua vida anterior à sua entrada na universidade, pois com a internalização correta das técnicas de OM mesmo que os espaços ainda careçam de muitas adequações o estudante cego de certo inquietar-se-á com possíveis fatores que o impede a exercer seu direito de cidadão, o direito de ir e vir em todos os espaços da academia e saberá apontar inclusive melhorias para assegurar tal garantia.
REFERÊNCIAS
MOSQUERA, Carlos Fernando França. Deficiência visual na escola. Curitiba: Ibpex, 2010.
BRASIL. Orientação e Mobilidade: Conhecimentos básicos para a inclusão do deficiente visual. Elaboração Edileine Vieira Machado…[et ai.] – Brasília: MEC, SEESR 2003. 167 p.
COÍN, Rivero; ENRIQUEZ, Maria I. R.. Orientação, Mobilidade e Habilidades da Vida Diária. In: Deficiência Visual: aspectos psicoevolutivos e educativos. São Paulo: Santos, 2003.
HOFFMANN, Sonia B.. Benefícios da Orientação e Mobilidade – estudo intercultural entre Brasil e Portugal.Benjamin Constant, [S.l.], n. 14, abr. 2017. ISSN 1984-6061. Disponível em: <http://revista.ibc.gov.br/index.php/BC/article/view/606>. Acesso em: 28 set. 2018.